Ensinou-nos a sua receita de Brócolos com Queijo enquanto cantava sobre a Maria e José em Mal Me Queres, Bem Te Quero (2019), mostrou-nos a sua versão da música tradicional portuguesa em Tradição (2020), agora, Bia Maria, jovem cantora de Ourém, no seu mais recente EP, do Roberto, leva-nos pela mão a uma pequena e íntima viagem ao seu mundo, através de delicadas canções a voz e piano.
Em conversa com i, a talentosa artista fala sobre os desamores e pequenos objetos que inspiraram as composições do seu mais recente trabalho, lançado na última sexta-feira, enquanto incide alguma luz sobre o seu primeiro disco de longa duração, que espera lançar perto do final do ano.
Numa altura em que muitos fãs aguardam ansiosos pelo lançamento do seu primeiro álbum de longa duração, porque decidiu lançar agora este EP do Roberto?
Na verdade, este EP já era para ter sido lançado há algum tempo, mas esta foi a altura ideal porque tinha muita vontade de lançar um trabalho mais minimalista, onde só utilizaria voz e piano, mas, antes desse trabalho, estava decidida a lançar primeiro o meu álbum. Entretanto, tive de colocar a longa duração na gaveta, também porque estava à espera de financiamento para conseguir gravá-lo, e, devido a este adiamento, como já tinha estas canções pensei que fazia todo o sentido lançá-las agora para “saciar” os fãs.
Estas canções parecem ter um teor muito pessoal, como foi o processo da sua construção?
Este foi um processo muito importante para mim, queria muito voltar a conectar-me com o piano, que é a minha origem musical, não toco guitarra, foi nesse instrumento que comecei a escrever canções e fez-me muito sentido este regresso às origens.
Este foi um lançamento um pouco discreto, foi também por isso que optou por este som minimalista?
Sim, como estava a explicar, este som está muito ligado às minhas origens musicais, por isso, era importante fazer esta desconstrução e voltar a conectar-me com a “Bia inicial”. É um regresso às origens um bocado mais íntimo.
Será que essa vontade também surgiu agora por estar a viver novamente na sua terra natal, Ourém?
Quando escrevi as canções estava num momento mais introspetivo da minha vida. Também aconteceu durante a pandemia, quando estive confinada na minha casa, não saía, nem estava com ninguém, era só eu, os meus pensamentos, as minhas coisas, as minhas palavras e acredito que tenha tido um peso bastante determinante.
Diria que Ourém tem uma carga específica em Roberto?
Diria que sim, especialmente, porque o disco, apesar de ter sido gravado em Lisboa, o processo de composição foi todo em Ourém. Por isso, é que também reflete um bocado este som mais caseiro e intimista.
Acha que esse conforto do lar a ajudou a expor-se um pouco mais nas canções?
O disco foi gravado na Chinfrim Estúdios, em Lisboa, mas estive a trabalhar nele, a escrever, a pensar nas palavras meticulosamente e a tentar dizer tudo aquilo que tinha para dizer no meu quarto sozinha, portanto, desempenhou um papel fundamental.
Uma peculiaridade do Roberto é que os títulos das canções remetem para a sua casa e para seu quarto. Esta é uma das grandes magias da sua música, transportar-nos para o seu mundo ao falar-nos dos seus objetos do dia-a-dia, como a Casa, o Quarto, o Roupeiro e o Cobertor. Ao falar destes objetos é também uma forma de se expor e de nos mostrar o seu íntimo?
Acredito que só consigo escrever sobre assuntos que senti ou que experienciei em primeira mão. Na verdade, todas essas alusões que faço nos títulos das canções estão mais ligados ao quarto do Roberto e não, propriamente, do meu, mas são tudo peças porque estão muito ligadas a mim, a uma história que passei. É muito interessante fazer esta ligação entre os objetos e tudo aquilo que estava a sentir.
Será que podia elaborar um pouco sobre cada um dos objetos e músicas? Podemos começar pela “Casa”, a primeira música do disco.
A Casa foi a primeira canção que apareceu, porque um dos primeiros contactos que tive com o Roberto depois de o conhecer foi na sua casa. É, automaticamente, um dos primeiros objetos que associo a ele. Este disco é uma viagem de todos estes objetos. Vou tendo oportunidade de conhecer melhor o Roberto e, sucessivamente, os seus objetos, primeira a Casa, depois o Quarto e, aqui dentro, o seu Roupeiro e depois o Cobertor. Todos estes objetos são analogias para certas experiências que vivemos juntos.
Pode falar de um caso em concreto?
Por exemplo, a canção do Roupeiro tem a ver com todas essas roupagens e camadas que, às vezes, temos nas nossas relações e que, às vezes, nos custam tanto a despir e a mostrar como somos na realidade. Essa é uma das características que mais tende a prejudicar as relações, porque coloca um entrave na comunicação dos casais. Ou seja, não se trata tanto do seu roupeiro físico, é mais uma metáfora. No caso da última canção, o Cobertor, é sobre sentires-te abraçado, acarinhado e quente numa zona de conforto, que foi um bocado o que o Roberto me fez sentir, entretanto acabou, mas trouxe-me muitas reflexões importantes.
Também é interessante a ordem em que surgem as canções, do maior objeto, a Casa, para o mais pequeno e mais pessoal, o Cobertor…
Na verdade também foi isso que aconteceu. Cheguei à casa como uma pessoa e, durante a minha relação com o Roberto fui encontrando cada vez coisas mais pequenas dentro de mim e conhecendo-me, também, cada vez melhor. Também foi uma inspiração para este trabalho e a forma como foi organizado.
Já mostrou estas músicas ao “Roberto”?
Ainda não. Acho que nem faz ideia que é o “Roberto”.
Depois desta pequena amostra, isto é um indicador de como será o seu primeiro disco de longa duração?
Não, vai ser um trabalho completamente diferente. Com uma produção muito maior, com mais instrumentos e uma abordagem distinta. Também é um disco diferente porque não se foca numa histórica de amor e numa outra pessoa. É como se fosse uma Beatriz a falar mais sobre ela e não sobre outras pessoas. São as minhas reflexões e tudo aquilo que fui assimilando depois destas histórias e desamores.
Outra peculiaridade da sua música, e que esteve presente em grande destaque no seu EP, Tradição, é a adoção de influências da música tradicional portuguesa. Esse elemento também vai estar presente no seu próximo disco?
Esse é um elemento que vai sempre estar presente na minha música, até de forma inconsciente. Ouço muita música tradicional e, às vezes, mesmo que não esteja presente nos elementos óbvios das canções, vai estar na minha voz. Mas é algo que, sem dúvida, vai ser possível ouvir. Por exemplo, existe uma canção onde usamos um bombo português. Não quero estar a revelar demasiado, mas existe também uma parte em que está a ser tocado um samba e pelo meio passa a ser uma chula portuguesa, tornando-se uma mistura de elementos de diferentes culturas interessante.
Já mencionou que gosta e ouve música tradicional portuguesa, mas considera ter uma relação forte com este estilo musical?
Sim, até porque é uma das minhas origens. Foi o estilo de música que comecei a cantar quando era pequenina, porque também era o que a minha avó costumava cantar.
A sua avó é uma grande inspiração para o seu trabalho?
É sempre, quando olho para trás, inconscientemente, pensava sempre que a minha relação com a música tinha nascido quando comecei a estudá-la, ou seja, quando te dás de caras com a música erudita e clássica, que neste caso, foram as minhas bases. Mas, agora, quando olho para trás percebo que não foi nada disso que aconteceu, comecei a cantar em casa com a minha mãe e a minha avó e tudo o que cantávamos era música tradicional. Aquelas canções que passaram de geração em geração e de boca em boca. Por isso, sim, tem muita importância para mim.
Qual é que é a sua primeira memória musical?
Essa é uma questão complicada. Há uma que tenho sempre muito presente que é da minha avó, quando ia para casa dela nas férias, e lembro-me dela estar a cozinhar, enquanto estava a brincar, e começou a cantar o Alecrim. Tinha uma voz lindíssima. É uma memória que tenho congelada.
E foram essas canções que cantavam juntas, como a Alecrim ou a Oliveirinha da Serra, que acabam por aparecer mais tarde no Tradições?
São quase todas, eram as canções que ouvia a minha avó a cantar, outras que aprendi mais tarde e que me dão prazer de interpretar.
Agora, antes de acabarmos a conversa, gostava de lhe perguntar se podia revelar mais algum detalhe sobre o lançamento do seu primeiro disco de longa duração?
Adorava que o disco pudesse sair nos finais deste ano, mas vai depender se vamos conseguir financiar o disco na sua totalidade. Quero manter-me positiva e acreditar que sim, por volta de dezembro o álbum estará pronto.
Já é a segunda vez que menciona a dificuldade em garantir financiamento para o seu disco, a pandemia dificultou esse procedimento?
Foi não só pela pandemia, mas também pela forma como todo este sistema funciona. Quando gravei o meu primeiro EP, foi completamente diferente, ainda estava a estudar, assim como o Bernardo Ramos, Guilherme Simões e Rodrigo Domingos [fundadores da editora], então tínhamos meios e apoios da Escola Superior de Música de Lisboa, por isso, foi tudo muito mais fácil e diferente. Agora, é muito complexo. É necessário pagar a músicos, é preciso pagar o estúdio, é preciso pagar quem produz, quem grava. É tudo mais complicado e não me queria estar a comprometer em levar este projeto para a frente sem poder nem ter a certeza que poderia pagar aos músicos. Também não existem muitos apoios a que possamos concorrer, e os que existem “são muitos cães a um osso”. Mas vou manter o meu espírito positivo e acreditar que tudo vai correr pelo melhor.