Acabaram de lançar o single Meio Amor e vão apresentar esta sexta-feira na FNAC do Chiado o álbum (Maior)idade. Qual é a expectativa?
Paulecas: Às vezes termos muitas expectativas, o que não é bom. O álbum continua a estar na linha do que tem sido feito pelos seBENTA mas, por outro lado, assistimos a uma grande mudança porque entraram novas sonoridades. Em relação a sexta-feira, o que esperamos é que as pessoas se desloquem à FNAC do Chiado e que não se consiga andar.
O lançamento coincide com os 18 anos de existência da banda. Foi coincidência ou foi propositado?
Paulecas: Este álbum tem uma particularidade porque começou a ser feito antes da pandemia. Começámos a trabalhar com o Samuel Palitos – dos GNR, dos Censurados, etc. – cerca de seis meses antes da pandemia. A ideia era trabalhar com ele todos os temas do álbum, mas acabou por fazer quatro temas. Nessa altura, tínhamos na nossa cabeça outra ideia, mas com o aparecimento da pandemia ficámos um pouco na expectativa do que iríamos fazer. Começámos a lançar singles, a trabalhar da melhor maneira possível que conseguíamos e como cada um de nós tem um home studio em casa começámos a enviar as coisas uns para outros. Ou seja, fomos trabalhando de uma forma diferente porque normalmente quando se pré-produz um álbum faz-se logo a estratégia, pensa-se que sai em x data, faz-se a pré-promoção e a promoção. Agora foi um tudo um bocadinho diferente. Foi acontecendo. Este álbum era para ter saído em dezembro de 2021, mas adiámos para março devido à pandemia.
Fadista: Este álbum foi uma aventura completa.
O lançamento continua a ser feito em época de covid. Calculo que tenha sido mais difícil de gravar…
Fadista: Não teve a histórica básica de pré-produção, em que são compostos os temas, vamos para estúdio durante uma semana, gravamos tudo e sai. Desta fez foi uma aventura completa. Gostávamos que este álbum não fosse produzido só por uma pessoa e não fosse gravado só num estúdio. Queríamos correr vários estúdios e vários produtores. Quando fizemos as primeiras gravações pensámos que essa ideia era um pouco arrojada, mas entretanto começou a pandemia e sem pensarmos nisso foi exatamente isso que aconteceu: gravámos em vários estúdios, trabalhámos com mais pessoas e isso é engraçado porque se nota a sonoridade de cada estúdio e de cada produtor. Este álbum não foi gravado todo na mesma altura foi apanhando várias fases: pandemia, vários estados de espírito porque o Paulecas é quem escreve as letras acabou por ser influenciado por estarmos em casa. E somos pessoas, em que ficar em casa muito tempo é complicado. Antes da covid vínhamos muito cansados da estrada, chegávamos a casa e passado umas horas já estávamos fartos de estar ali. Conclusão houve uma quantidade de fatores que influenciou o resultado final.
É uma fase atípica que se reflete no resultado final?
Paulecas: Acho que sim, porque os primeiros quatro temas foram produzidos pelo Samuel, os restantes temas foram produzidos por nós, um dos temas foi misturado por mim, outros misturados por Makoto dos Paus. Fizemos a pré-produção no nosso estúdio e, muitas vezes, em casa do Ricko. E neste processo ainda fomos infetados com covid. Ainda conseguimos fazer alguns espetáculos porque tivemos essa sorte. Fomos à Casa da Música no Porto, fizemos a Casinha que tinha e ainda tem um programa à quarta-feira de streaming, onde apresenta várias bancas. O que aconteceu? Aconteceram uma quantidade de coisas que nos obrigou a readaptar e isso aplicou-se a tudo: aos espetáculos, aos ensaios. Houve momentos que foram fabulosos, acho que a composição foi muito fixe, mas também houve momentos menos bons. Mas fomo-nos readaptando e, a partir do momento em que se dá o primeiro confinamento, não ficámos parados e foi a melhor coisa que fizemos. Achámos que era melhor ir compondo em casa, ir fazendo umas coisas. Cada um gravou em casa e depois misturou-se.
Fadista: Fizemos também um documentário gravado com os nossos telemóveis, cada um em sua casa. No confinamento trabalhámos imenso. Não parámos e fizemos uma coisa que para nós era completamente surreal que foi fazer um documentário à distância sobre o confinamento, sobre o estar em casa. Cada um de nós com os telemóveis ia para onde se podia andar. Como vivo no campo, ia para uma serra, fazia umas imagens sozinho. O Paulecas vivia na Alameda e gravava a fonte. Tudo isso ajudou-nos como artistas porque evitou perdermos a criatividade. Se começarmos a perdê-la e sentirmos que isso não está a fluir é uma coisa muito dolorosa. Com tudo isto conseguimos manter-nos ativos e criativos, ou seja, fizemos aquilo que gostamos.
Sem ter direito a espetáculos…
Fadista: Isso para nós foi o pior porque somos uma banda que gostamos muito de tocar ao vivo. É um pouco o nosso carimbo. Gostamos de fazer discos – é aquele tempo de laboratório – mas quando se chega à terceira semana já pensamos que podíamos tocar ao vivo. Isso foi uma coisa que nos custou muito. Andávamos sempre a dizer ‘nunca mais tocamos’. Quando fizemos os primeiros concertos fomos tocar à Queima das Fitas de Vila Real foi esquisito, foi muito bom, mas um bocado atípico.
Paulecas: Foi atípico porque nos sentimos um bocadinho estranhos. De repente vimos 10 mil pessoas à frente no palco depois de quase dois anos de confinamento. Quando olhei de frente para o público fiquei a pensar ‘ o que é isto que está a acontecer’. Parecia uma memória muito distante.
Ricko: Aconteceu o mesmo na Casa da Música, no Porto, em plena pandemia em que as pessoas estavam todas de máscara e sentadas.
Fadista: Ver assim um concerto de rock é um bocado atípico.
A pouco e pouco está tudo a voltar ao normal?
Paulecas: Se as coisas estão melhores então penso ‘bora lá viver as coisas melhores’. Não somos pessimistas. Falo por mim, não gosto de pessimismo, mas vou ser sincero: houve uma fase que começou a cansar porque tive covid, depois foram eles. Já estávamos a ficar cansados, fartos, como toda a gente. Para uma banda como a nossa que vive essencialmente do palco foi complicado. No primeiro ano da pandemia tínhamos a perspetiva de ter 40 datas e foram todas canceladas.
E também foi pesado em termos financeiros…
Paulecas: Todos tivemos de ir atrás das possibilidades de sobrevivência, de subsistência. A minha avó costumava dizer que quando havia muitos filhos ‘todos se criavam’, acho que a pandemia e toda esta situação fez-nos tirar macaquinhos do sótão. Ou seja, ‘tens o que tens e tens de fazer com o que tens’. Não vale a pena se estar a dizer que se tem de ter um instrumento x, ou a aparelhagem certa. O que é preciso fazer é o melhor que sabemos.
Principalmente, numa fase, em que a cultura foi maltratada?
Paulecas: A cultura sempre foi maltratada.
Fadista: Isto só destapou o véu. Se calhar a sociedade civil não tinha a noção que era assim que se trabalha na área do espetáculo.
Paulecas: Destapa e fez outra coisa, todas as pessoas perceberam que sem cultura não vivem. Se não fossemos todos nós a fazer coisas no confinamento e a mandarmos coisas cá para fora pergunto ‘o que seria passar por tudo isto em silêncio?’.
Estão previstos concertos para a apresentação do álbum?
Paulecas: Estamos a fazer as coisas um pouco ao contrário do que fazíamos. Neste momento estamos muito focados na parte promocional. Estamos focados em fazer a apresentação em algumas FNAC, não vão ser todas. Costumamos fazer sempre a apresentação em Lisboa, Porto, Coimbra, mas desta vez vamos fazer um bocadinho diferente. O que vamos fazer são pequenas apresentações, o que não significa que não iremos fazer concertos. Para já, estamos muito surpreendidos com as pré-vendas que estamos a ter e com toda a vontade das pessoas de quererem ver novamente os seBENTA no sítio onde se comportam melhor, que é no palco. Isso deixa-nos muito felizes. Estamos muito felizes por ir tocar novos temas. Estou a adorar esta fase, sinceramente.
E quase a chegarem aos 18 anos de existência…
Paulecas: Por isso é que o álbum se chama (Maior)idade. Tem um significado se quisermos espiritual. Contamos com 18 anos da banda, de resistência, de resiliência, da luta e também daquilo que mais gostamos de fazer. O nome deste álbum não saiu porque andávamos a pensar muito no seu nome ou em fazer a conjugação entre as letras e o álbum. Vou ser sincero, o nome apareceu-me num sonho, parece incrível, mas é verdade.
Continuam a cantar em português. Sentem algum preconceito? Parece que é mais fácil entrar nos ouvidos quando a letra é em inglês…
Pauleca: Não sei. Acho que não. Realmente o preconceito foi uma coisa com que aprendi a lidar, continuo a aprender e a tentar viver com menos preconceito. Acho que o preconceito está em toda a gente. E temos que lutar muito, na sociedade em que vivemos, para que não nos afete. Seja naquilo que for. Em relação à música é exatamente isso. E da dúvida ao preconceito é um salto. E começamos a ser julgadores de juízo alheio, etc. Tento, diariamente, ser melhor pessoa. É uma coisa que aprendi. Os seBENTA nunca tiveram esse preconceito. Se este álbum fosse em castelhano, era em castelhano.
Apresentam-se como uma banda de rock. É um estilo de música que vem sendo ultrapassado?
Ricko: Dizem que o rock está morto mas continuo a ver muito rock por aí. E a realidade é que mesmo nas listas de Spotify, o que se vende mais é rock e metal. O resto é pop e outros estilos musicais mas continuamos sempre, independentemente de ser rock ou pop – e de ser o estilo que nos podemos mais identificar –, quando nos sentamos a escrever não pensamos que estamos a escrever uma música rock, pop ou tecno. Apreciamos o momento que estamos a viver e quando começamos a tocar as nossas influências vêm ao de cima. Obviamente temos mais influência sobre rock mas cada um tem uma influência. Eu tenho de jazz, de rock, metal… O Paulecas tem outras e toda esta mescla vai buscar tudo aquilo que criamos. Ou seja, acabamos por não nos categorizar mas acabamos por fazer a música que escolhemos fazer. Ou seja, sentamo-nos e criamos aquilo que gostamos. Quando criamos os nossos temas, estamos a produzir, estamos a ver qual é a melhor solução para os temas, não estamos preocupados se é a estética x ou y. Estamos preocupados é se a mensagem vai passar. Em primeiro lugar, em termos de música, se é audível face ao público alvo que queremos atingir e, em segundo lugar, ao nível de letra, se a mensagem vai passar e se chega às pessoas. E isso tem de fazer sentido.
É isso que pretendem passar com o novo álbum?
Paulecas: Exato. Na linha daquilo que o Ricko estava a falar, acho que houve algo que tem sido muito mal tratado e é ridículo. Estamos a falar da música que faz encher arenas, estádios e que é utilizada muitas vezes pelo seu nome para vender marketing para outros, isso é ridículo. E nem há aqui essa questão de estilos musicais. Modas sempre existiram e vão existir. O rock está mal tratado. Falo isto abertamente, começa por ser maltratado pelas próprias bandas. Enquanto não houver uma união de defesa nesse sentido…
Maltratado pelas bandas como?
Paulecas: Porque as bandas têm de se unir. Os músicos têm de se unir. Vivemos num país em que a divulgação do rock às vezes dá-me vontade de rir. Porque é que o rock parece que é o parente pobre ou o papão? Isso não tem lógica nenhuma. Por exemplo, os Idles vieram a Portugal e todos escreveram sobre isso. É giro porque pensam que o punk e o rock estão mortos, mas depois todos escrevem: “Maravilho”, “espetacular”, “concerto fabuloso”, etc. Porque não se faz isto a uma banda portuguesa? Não tem que ser com os seBENTA. Não se divulga porque o próprio setor profissional onde se encontram as bandas tem de ser mais defendido pelos músicos. Não faço, nem abro guerras com ninguém e nem nos podemos queixar muito porque somos uma banda bem aceite na comunicação social independentemente de haver uns que gostem e outros que não, mas isso faz parte da vida. O que estamos a falar é de um estilo, de um estilo que faz encher pavilhões, arena e estádios.
Os músicos deviam falar todos numa só voz?
Paulecas: Sim, da mesma forma que temos cooperativas de defesa à arte e que têm feito um trabalho excelente. Temos de pensar que esse mesmo trabalho poderá ser feito por uma organização que pode ser cooperativa, por uma associação, etc., de defesa àquilo que é a produção nacional porque esta não pode ser só vista nem só por um estilo, nem só por uma quantidade de pessoas. Vamos lá deixar a onda dos amiguinhos e de bater palmadinhas nas costas porque existem excelentes músicos em Portugal, excelentes bandas em Portugal que não são ouvidas e que não passam na internet.
E não paga contas…
Paulecas: Nem paga contas. A televisão continua a ter um peso enorme, a rádio continua a ter um peso também. Não tanto como já teve mas continua a ter. Infelizmente não há uma fiscalização neste país. Há a lei da rádio e ninguém a cumpre. Em relação às rádios privadas não pode ser à la gardere mas é privada, tem o direito. Agora nas rádios públicas? Em que andamos em discussões se entra na playlist? O que é isto? Nós é que pagamos o serviço público. Toda a gente tem o direito a usufruir desse serviço. É lógico que a produção em Portugal iria subir, a qualidade iria subir. Claro que tem de haver parâmetros. Não é passar uma banda qualquer só porque sim, porque é serviço público. Não é isso. O problema é que a maioria dessas pessoas que fazem essas escolhas e que são pagas por todos nós, nem sabem o que é serviço público. Essa é que é a discussão.
Anabela Alves tem 57 anos, é especialista em Direito Internacional e foi a primeira advogada portuguesa a participar em julgamentos por crimes de guerra, desde logo no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, dissolvido em 2017, onde esteve frente-a-frente com o antigo Presidente sérvio Slobodan Miloševic. Trabalhou na fundação do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, onde viveu 12 anos, e está desde outubro de 2021 ao serviço da Academia Internacional dos Princípios de Nuremberga, onde é responsável pela formação de magistrados de todo o mundo para a implementação da lei internacional. Uma missão para que se sentiu chamada ainda em criança e a levou no final do liceu para Londres, onde se formou. E que está longe de dar por terminada. Acredita que a guerra na Ucrânia pode ser um marco no combate à impunidade, mas para isso é preciso Estados mais ativos para fazer cumprir a lei em todas as circunstâncias, repto que deixa também a Portugal. Com uma experiência ímpar, diz que estão a ser cometidos crimes de guerra na Ucrânia e que as justificações russas não têm respaldo legal e factual, como ontem decidiu o Tribunal Internacional de Justiça. Em conversa com o i a partir de Nuremberga, explica o impacto que pode ter a decisão.
Como chegou a Nuremberga, o berço da justiça internacional?
Sou advogada de direito internacional penal. Especializei-me no mesmo ano em que o Estatuto de Roma (que cria o Tribunal Penal Internacional – TPI) foi adotado, em 1998, e tenho estado a trabalhar nesta área desde então. Estive envolvida na redação do primeiro julgamento de genocídio do tribunal da Jugoslávia sobre o massacre de Srebrenica e noutros casos de crimes semelhantes, graves. Depois fui convidada a fazer parte do primeiro grupo de advogados permanentes no TPI e participei na redação dos primeiros documentos jurídicos, desde o código de ética judiciária ao modo de participação e proteção das vítimas e testemunhas, regulamentos e todas as etapas que foram necessárias para ter o TPI pronto para começar a receber casos. Estive também na missão da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) no Kosovo, no treino de juízes procuradores nesta área de justiça e internacional e agora estou a aqui. Foram 12 anos em Haia, e agora estou em Nuremberga desde outubro do ano passado. Fui convidada para vir para a Academia de Nuremberga para liderar o portfólio de treino de magistrados nesta área de direito. São várias formações, com magistrados de diferentes áreas do planeta, em que vários peritos treinam procuradores e juízes para os preparar para acabarem com a impunidade de crimes graves contra a humanidade.
Quando chegou a Haia havia mais portugueses? O que a moveu?
Fui e continuo a ser a única portuguesa neste tipo de julgamentos. Foi sempre uma paixão minha, por ver as injustiças da guerra, as injustiças cometidas contra crianças. Foi, como se diz, o meu chamamento. Com 12 anos já tinha decidido que iria para Inglaterra estudar direito e que iria seguir uma carreira na justiça internacional e na área dos direitos humanos.
Com 12 anos?
Sim, a minha família desatou-se a rir à gargalhada mas foi o que acabou por acontecer. Fui para Inglaterra estudar, não foi fácil. Tive de combinar a licenciatura em Direito em Londres com três empregos em part-time. Depois fiz um mestrado na área de direito internacional penal na London School of Economics e depois fui para o TPI.
Mas consegue hoje perceber de onde veio esse chamamento na infância?
Não sei, foi mesmo uma força interior de querer dedicar a minha vida à justiça e à proteção de direitos humanos. Comecei a aperceber-me de injustiças, das guerras que passavam nas notícias e foi crescendo esse idealismo mas ao mesmo tempo a vontade de querer contribuir para um mundo melhor e para uma justiça internacional. Somos humanidade, mas se somos humanidade temos de nos respeitar individualmente e todas as pessoas têm os seus direitos, o direito à vida e o direito a serem felizes. Quando conheci o último procurador sobrevivente dos casos contra os nazis (julgamentos de Nuremberga), o Benjamin Ferencz, que fez esta semana 102 anos, isso ficou muito claro. Conheci-o em Nova Iorque quando o meu mentor, o Roger Clark, me convidou a ir uma das reuniões do comité que estava a trabalhar na redação do Estatuto de Roma. Foi uma honra enorme poder conhecê-lo como a muitas outras pessoas que lutaram pela justiça internacional, como a dra. Paula Escarameia, que liderou os trabalhos em Nova Iorque e é considerada nas Nações Unidas uma das mulheres que mais contribuiu para o desenvolvimento desta área. Mas nesse encontro em 1997, ainda estava eu no meu mestrado, o Benjamin Ferencz disse-me: “Anabela, nunca deixes de lutar pela paz mundial e justiça internacional”. Tenho isso marcado até hoje. Os meus colegas perguntavam-me de onde vem a minha energia e o alento vem também daí.
A determinação?
Sim, e a energia mesmo. Neste tipo de casos ouvem-se testemunhos que destroem a moral e o espírito de qualquer um. Tive colegas que se desmanchavam na sala de audiência a chorar, que ficavam fora quatro meses e eu continuava com energia. O que pensava era “quem sou eu para desvanecer e ficar sem energia e sem força quando testemunhas que passaram por crimes e coisas que não entram na imaginação de um ser humano normal conseguiam ter energia para ir a Haia, testemunhar e estar frente-a-frente aos criminosos”. E é isso que me faz continuar.
Esta quarta-feira torna-se um dia simbólico no atual conflito na Ucrânia, com uma primeira decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) sobre a guerra. Não é ainda uma decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI), que está a investigar crimes de guerra. O TIJ julga conflitos entre Estados. Pode explicar-nos estas duas esferas da justiça internacional?
O Tribunal Internacional de Justiça ouve casos de disputas entre Estados e avalia a responsabilidade de cada um. Pode haver vários tipos de disputa, por exemplo conflitos pacíficos relacionados com exigência de território continental ou marítimo. Este caso da Ucrânia contra a Rússia deu entrada no dia 25 de fevereiro, no dia a seguir à invasão, porque a desculpa que a Rússia deu é que a Ucrânia é que estava a cometer genocídio nas duas províncias que tinha invadido e ocupado, o que não está baseado em factos nenhuns nem na lei. É a segunda vez que a Rússia dá esta desculpa, já o tinha feito em 2014. É a primeira vez que o Tribunal Internacional de Justiça avança tão rapidamente com um caso e fá-lo devido à chacina que se está a ver na Ucrânia, seja pelo trabalho dos media, pelos relatórios que nos chegam e pelos relatos dos refugiados que estão a chegar a diferentes partes da Europa. É de facto uma decisão rápida, em 19 dias, mas necessária, porque se o Tribunal Internacional de Justiça declarar que a Rússia invadiu e cometeu um ato de agressão contra a Ucrânia, isso vai reforçar ainda mais a possibilidade do procurador Kharim Khan, procurador-geral do TPI, preparar o caso para apurar a responsabilidade individual de Putin.
Conversamos ainda antes de ser conhecida a decisão. Uma decisão favorável à Ucrânia (como veio a ser anunciado ontem à tarde) pode ter mais do que consequências simbólicas?
O que é importante na decisão desta quarta-feira é que ajude a parar com a guerra, com a operação militar e com as mortes de civis. O importante é parar com as mortes de mulheres, crianças e idosos que têm estado a acontecer todos os dias e a chocar a comunidade internacional. A decisão do TIJ tem de ser aplicada e para aplicar uma decisão favorável à Ucrânia é necessária a cooperação de todos os Estados. Têm de continuar as negociações e tentar mediar as conversações com Putin para o levar a parar os crimes de guerra. Esse é o primeiro passo. Há esse efeito. Depois dá mais força ao TPI para preparar o caso de responsabilidade individual contra Putin e outros porque confirma que não há dados e factos que justifiquem as alegações falsas que ele levantou e o ato de agressão e a guerra que estão a levar a cabo.
Mas uma decisão que inste a parar a guerra terá sempre o obstáculo da Rússia não a reconhecer.
Mesmo que não reconheça é válida e países que estão ao lado da Rússia neste momento, por exemplo a China, poderão virar-lhe as costas. Ninguém tem interesse em, havendo uma decisão do Tribunal Internacional de Justiça, continuar a colaborar com um regime que está deliberadamente a violar a soberania de um Estado inocente e a manchar as mãos.
Sabemos que na China e noutros países também existem violações de direitos humanos e isso não detém regimes nem motiva sanções como as que vemos hoje.
É verdade. Há violações de direitos humanos que cada Estado tem o dever de condenar, como Portugal teria por exemplo a obrigação de não colaborar com a China. Portugal fez contratos até para a exploração de eletricidade que não devia ter feito, porque a China está a levar a cabo o genocídio de muçulmanos e isso é do conhecimento comum. Quem colabora com regimes que violam deliberadamente direitos humanos também tem culpa. Era como Ben Farencz dizia: o pior não é só quem faz, quem comete o crime, mas quem fica em silêncio ao saber que estão a ser cometidos esses crimes. Mas nesta situação concreta, penso que ninguém vai ter interesse em ficar ao lado da Rússia se o Tribunal Internacional de Justiça declarar que está a ser cometido um ato de agressão e matança indiscriminada de civis, que vai contra todo o direito internacional tratado e não tratado. Nuremberga aconteceu por alguma razão e os nazis foram julgados para não se voltar a repetir o que Hitler fez.
Pegando no que diz, e olhando apenas para as sanções sem paralelo que o Ocidente conseguiu aplicar contra a Rússia numa situação crítica, não há uma certa hipocrisia quando não são usadas noutros momentos?
Há um bocadinho de hipocrisia sim. Temos a Síria, temos o Iémen, temos Myanmar, temos várias situações de guerra em que há violação no direito internacional. A guerra no Mali continua, na República Centro-Africana, no Sudão. A Rússia tem um grupo de mercenários, o grupo Wagner, que estão lá só para minerar minerais que hoje são precisos para os carros elétricos e ninguém quer saber como é aquilo chega às nossas mãos. As pessoas andam todas excitadas com carros elétricos mas os carros não chegam cá porque alguém nos está a dar as matérias-primas. E nestas operações há crimes contra a humanidade que são cometidos e passam à margem, mortes, o uso de crianças. Agora o que temos neste momento é uma guerra que está a ter proporções que se não for parada vai ser uma terceira guerra mundial porque temos ali outros Estados como a Polónia, Lituânia, a República Checa que fazem parte da Europa e por isso estamos todos afetados. Mas claro que há muitas responsabilidades a apurar e por isso é importante que cada Estado, inclusive Portugal, tenha um gabinete de advogados e de procuradores especializados em crimes de guerra, porque este tipo de crimes tem jurisdição universal e todos os Estados que são signatários e fazem parte do Estatuto de Roma têm a obrigação de acabar com a impunidade desses crimes.
Crimes de guerra que são, desde logo, o ataque e abuso de civis?
Sim, ataques a civis, mas também pode ser destruição de museus. São crimes contra a humanidade quando são cometidos em grande escala e sistematicamente.
Do lado do Ocidente, também houve crimes de guerra cometidos na invasão do Iraque, reconhecidos por exemplo no Reino Unido, e que não houve julgamento pelo TPI. Sendo este o conflito que se vive agora, como se explica isso?
Não houve porque grandes potências europeias estavam a colaborar com os Estados Unidos naquilo a que se chamam intervenções humanitárias, o que também pode ser um bocadinho hipócrita e sim houve crimes gravíssimos e infelizmente a impunidade ainda prevalece. O Reino Unido tem o seu gabinete especializado para lidar com os crimes cometidos pelas forças inglesas no Iraque, na Síria, no Afeganistão, o mesmo os EUA e no fundo cabe a cada Estado ser responsável por julgar os militares envolvidos neste tipo de crimes. Sim, não há desculpa para este tipo de invasão de um estado soberano, todos os Estados têm de respeitar a carta das Nações Unidas, mas não é o facto de uns terem violado a carta das Nações Unidas como os EUA fizeram com a invasão do Iraque com a desculpa da intervenção humanitária, não é pelo facto de eles terem falhado que nós devemos falhar ao povo ucraniano.
Mas não será um momento importante para se refletir sobre o papel do TPI e a aplicação do Direito Penal Internacional em cada país?
Sim, porque infelizmente é verdade. Julgar este tipo de crimes requer uma máquina humana e financeira e a garantia que temos é que o TPI é complementar aos sistemas judiciários nacionais, mas cada Estado que pertence ao TPI tem obrigação de criar no seu sistema interno um gabinete especializado nesta área. Há países a avançar e muito ativos e por isso não quer dizer que ninguém vai ser punido pelos crimes no Iraque, no Sudão ou na Síria porque há pessoas a serem julgadas na Alemanha, na Suíça, na Suécia. A jurisdição internacional está a ganhar mais peso e há vários países a avançar, daí falar há pouco da importância de gabinetes especializados, incluindo Portugal, e cada país assumir a sua responsabilidade pelo julgamento de crimes que afetam a humanidade. Mas concordo, o reconhecimento do TPI só terá maior relevo se julgar igualmente os semelhantes de George W. Bush, Tony Blair, Gordon Brown, e outros líderes europeus, responsáveis pelas guerras ilegais levadas a cabo no Iraque, Síria, Afeganistão, Líbia e outros países, com o disfarce de “intervenções humanitárias”, onde milhares de civis inocentes morreram, e continuam a morrer e foram sujeitos a crimes igualmente hediondos. Infelizmente, esse tempo de viragem ainda não chegou mas talvez chegue com a pressão civil. Na Bósnia, apesar do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, muitas vítimas ainda aguardam ao fim de mais de 20 anos por justiça. O mesmo se passa no Kosovo com as vítimas de crimes sexuais, cometidos por ambas as partes (sérvios e kosovo albaneses).
Em Portugal, de que sente falta?
Penso que em Portugal tem de haver um alerta para esta situação porque os criminosos fogem para todo o lado e onde é mais fácil esconderem-se é em países que não estão ativos na perseguição deste tipo de criminosos. Um país mais ativo torna-se menos atraente para potenciais criminosos se refugiarem como turistas ou algo assim.
Discute-se muitas vezes a independência do poder judicial face ao poder político. Vemos agora a urgência desta guerra na justiça internacional. É uma questão que pode colocar-se ou ser aberta rapidamente uma investigação é uma resposta à tragédia humanitária?
A única dinâmica política a imprimir rapidez é uma posição firme de todos os Estados para acabar com a chacina. A rapidez é para tentar evitar um genocídio como houve na Bósnia, que não foi assim há tão pouco tempo, em que há pessoas ainda a recuperar, pessoas ainda à espera no desfecho de julgamentos. Quanto ao resultados, teremos de aguardar e perceber o impacto, nomeadamente se tem algum efeito nas negociações.
Participou no julgamento de Slobodan Miloševicć no Tribunal Criminal Internacional para a antiga Jugoslávia, o primeiro líder europeu acusado por crimes de genocídio. São imagens de que se tem lembrado?
Sim, conheci o sr. Miloševic na prisão. Fui falar com ele, na altura estava responsável por lhe entregar o ato de acusação para os crimes cometidos na Bósnia. Uma pessoa calma, extremamente inteligente, e ali temos o paradoxo de como poder encontrar alguma lógica na monstruosidade dos crimes cometidos perante uma pessoa pacífica, inteligente e até a tentar fazer piadas. Quando lhe entreguei o ato de acusação ele perguntou: “De que é que me vão acusar agora, que eu matei o Ronald Reagan?” Completamente psicopático, sem se mostrar minimamente preocupado com os crimes cometidos na Bósnia.
Acredita que Putin será julgado?
Não posso especular sobre o futuro. Tenho esperança que sim, mesmo que não seja julgado tenho confiança que muitos à volta dele serão julgados. Também ninguém acreditava que Miloševicćestaria alguma vez sentado no banco dos réus e esteve. Infelizmente morreu durante o julgamento. Acredito que cada vez mais, e estamos no século XXI, ninguém quer guerra e já toda a gente condena este tipo de crimes horrorosos porque são os inocentes que acabam por cair. Miloševic teve de ouvir algumas testemunhas relembrarem os atos cometidos, atos horrorosos, ao ponto de os intérpretes não aguentarem e desmancharem-se em lágrimas ao dar voz às vítimas. Ainda hoje de manhã me contavam que os russos estão a mudar-se para a Geórgia, outro país que também invadiram, a tentar fugir às sanções económicas. Há uma invasão de russos porque não precisam de visto para entrar. Mas há três atos de acusação que saíram esta semana do TPI contra três altos criminosos da Rússia pelos atos na Geórgia, por isso acredito que há justiça a ser feita.
Nesse cenário, a pena maior é a prisão perpétua?
Sim. A pena máxima são 30 anos e depois prisão perpétua. Portanto se os juízes quiserem dar mais de 30 anos, a sentença tem de ser prisão perpétua, não pode ser por exemplo 40 anos como no julgamento de Radovan Karadzic, o primeiro caso de genocídio em que trabalhei. Ou é 30 ou prisão perpétua, como já foi aplicado. E isto é importante para acabar com a impunidade mas para a dissuasão de outros potenciais criminosos. Neste momento a justiça internacional está determinada a mostrar que não há modo de escapar com crimes graves contra a humanidade.
Neste sentido, esta guerra, até pela atenção mediática, pode ser um momento de viragem?
Penso que sim. Tenho extrema confiança no procurador Karim Khan, é uma pessoa muito inteligente. Fez um trabalho muito bom no Iraque na luta contra os crimes cometidos pelo ISIS e agora no Tribunal Penal Internacional tem uma estratégia extremamente focada e o objetivo dele é acabar com a impunidade neste tipo de crimes.
Figuras ucranianas podem também vir a ser julgadas?
O Tribunal irá investigar crimes cometidos por ambas as partes. Independentemente de quem comete os crimes. Também se viu no tribunal da Jugoslávia isso. Também houve criminosos da Bósnia julgados. Crimes contra civis não podem ser cometidos numa guerra e as convenções de Genebra de 1945 são muito claras.
Não é olho por olho.
Sim, há uma conduta que tem de ser respeitada quando se trava um conflito armado.
Neste momento está a trabalhar mais na formação, mas pelos relatos que lhe chegam, pelas imagens, e com a experiência que tem, o que vê?
Vejo um déjà vu do que vi na Bósnia. O terror, o trauma e o perigo acrescido de outros tipos de criminosos oportunistas se aproveitarem desta guerra e da fraqueza dos civis que estão a fugir, nomeadamente para o crime de tráfico de seres humanos.
É um dos alertas que tem estado a soar. Já há indícios?
Sim, já há crianças e mulheres desaparecidas. O Conselho da Europa e a OSCE estão muito ativos, já foram à fronteira e tentam trabalhar com o sistema que está a funcionar para minimizar este crime adicional porque as pessoas estão vulneráveis, fogem com aquilo que têm vestido e muito facilmente caem nas mãos das pessoas erradas. Mas há outras situações. Já há relatos por exemplo de ajuda que tem sido dada com os animais de estimação, porque muitos ucranianos ao fugir querem levar os seus animais, e aparecem oportunistas a dizer que vão ajudar com comida mas têm de pagar, quando todo estes serviços são grátis e há associações no terreno a garanti-los. Uma guerra leva sempre ao oportunismo por pessoas que não têm o mínimo de dignidade moral e que se aproveitam dos horrores para fazer dinheiro.